Zero-a-Zero
Acabo de chegar. Peguei um cineminha com Elza, a primogênita. Antes do filme almoçamos, depois do filme nos sentamos para café e papo a uma mesa da praça de alimentação do shopping. Nossos assuntos não se acabam.
Em dado momento, eu disse que pretendia escrever uma crônica sobre um nosso velho conhecido. Mas agora, ao encarar o écran (como dizem meus preciosos leitores portugueses), já não sei. É que a escabrosidade do “tema” pode fazer com que a filha deste sórdido redator exclame, como de outras vezes, “Eco, pai, você é nojento.”
Bem. Que este chatíssimo nariz de cera sirva de advertência à sensível garota, e ela pare de ler por aqui.
Na verdade, eu deveria lavar minhas cuecas e deixar o texto para outra ocasião, caso contrário terei de re-vestir alguma do everéstico monte de roupas sujas. Sinto, porém, que devo cuidar da fome de ávidos leitores. Não lavo as cuecas, mas lavo as mãos.
Eis que, inopinadamente, entro no assunto. Ou, melhor, o assunto sai de mim.
Estava eu no bar de meu amigo Tião, como costumo fazer há séculos, sempre ao pé do balcão, quando vejo o pesado vulto de Zero-a-Zero passar por mim e se meter pelo estreitíssimo corredor que leva ao banheiro. Deixou um amigo sentado à mesa lá fora.
Tiãozinho, distraído a me contar um de seus espichados casos, não percebeu o apressado movimento do exótico freguês, com suas enormes botas de borracha, seu chapelão de couro falso, seus grandes e redondos óculos de fundo de garrafa de vidro.
De repente, o dono do conceituado boteco ergue o nariz e fareja a atmosfera abafada e quente. “Algum desgraçado cagou e não deu descarga.”
Devo esclarecer ao leitor engajado em nobres causas de sustentabilidade ambiental que Tião não gosta de desperdiçar água com qualquer bosta. Tanto é assim que na sexta-feira (hoje é domingo) – mal se escorrera o Dia Mundial da Água – um funcionário da Saneago esteve no estabelecimento. Saneago é a companhia de água e saneamento do Estado de Goiás.
A “autoridade” não estava, evidentemente, preocupada com saneamento, e sim com água. Foi categórico com d. Lourdes, a mulher de Tião: “O consumo está fora do padrão.” Ainda sob o clima evaporativo do Dia Mundial da Água, d. Lourdes acreditou que o homem falaria de provável desperdício. Mas não.
“O consumo está abaixo do normal”, esclareceu o preposto, avisando que mandaria uma equipe para averiguar as instalações hidráulicas da venda e da residência do casal. Meu amigo está preocupadíssimo, a temer mais uma multa. “Se eu estivesse aqui explicava que a gente faz uma economia danada de água.”
Não sei se ele diria isso à Vigilância Sanitária, que há algum tempo mandara uma fiscal para ameaçá-lo com multa. Ela deu prazo de trinta dias para o vendeiro colocar sabão e papel higiênico no banheiro. Não deu ouvidos à explicação de que era só colocar papel e sabão na casinha dos suspiros para os produtos desaparecerem. “Aqui atrás do balcão tem sabão e papel higiênico, basta a pessoa pedir”, disse cheio de razão o meu amigo, cansado dos furtos.
Ele foi rigoroso no cumprimento da determinação. Na noite do vigésimo nono dia, pouco antes do baixar das portas do bar, lá estavam um pedaço de sabão do tamanho de um tablete de caldo de galinha e um minguado rolo de papel.
Zero-a-Zero é um sujeito insuportável, com aquela voz arrastada e chorosa, carregada de ironia ou escárnio contra pessoas sérias. Deve ser influência dos “produtores culturais” que frequentam bar na Avenida 84, pertinho da Praça Cívica, em Goiânia. Uma vez, da janela do ônibus que me sacolejava, eu o vi ali, a circular entre mesas com enorme abridor de garrafa pendurado na cintura.
Na maior expectativa, fiquei à boca do corredor que conduz à minúscula privada para observar a reação de Tião quando descobrisse que o evacuante era Zero-a-Zero. A coisa foi melhor do que eu imaginava. O desgraçado nem se dera ao trabalho de aferrolhar a porta, que o meu amigo empurrou para levar um susto.
Ali, voltada para a porta, bem perto de meu amigo, assomava, feito assombração, a carona redonda com óculos redondos. A bunda gigantesca remexia-se sobre a pia, que é do tamanho de um prato de restaurante self-service, enquanto a mão direita, depois de recolher um fio d’água da torneira regulada contra o desperdício, se esfregava na vala do desgraçado.
Zero-a-Zero levou o maior esporro, mas não se abalou. Voz chorosa e arrastada, modulou: “Mas, Tiãozinho, você não coloca papel no banheiro.” Levou mais bronca, reagindo como se fosse elogio. Quando meu amigo voltou para trás do balcão e se postou próximo à estufa de salgados, Zero-a-Zero o seguiu, estendendo a gotejante mão direita, em aberta provocação: “Mas, Tiãozinho, me desculpe, aperte aqui.”
Tião gritou: “Sai pra lá com essa mão cheia de lama de bosta, seu safado.” Em todos estes anos que o conheço, jamais vira o marido de d. Lourdes tão enfurecido. Zero-a-Zero, no entanto – voz arrastada, chorosa –, continuou com o desplante: “Mas, Tiãozinho, você não coloca sabão no banheiro.”
Então, como que para apaziguar o vendeiro, pediu um tipo de salgadinho aqui chamado de disco de carne. Lábios fortemente cerrados, a ofegar de tanta raiva, Tião pegou um guardanapo e com ele recolheu da estufa o salgado, que Zero-a-Zero agarrou – com a mão direita – pela parte superior, descoberta, desprezando o guardanapo.
Espectador atento, acompanhei com os olhos o abominável freguês, que se dirigiu à mesa em que antes estivera, partiu generosamente ao meio o disco de carne e estendeu ao amigo a metade que segurava com a mão direita. Ambos, felizes, devoraram o petisco. Zero-a-Zero era, sem dúvida, o mais feliz dos dois, talvez o homem mais feliz do mundo.
Ah, leitor, sei muito bem que minha Elzinha não dará a mínima para a advertência que fiz e lerá até o fim este caudaloso texto, falto de economia e comedimento. Ela faz qualquer sacrifício para saber até onde o pai é capaz de ir. Só não ficará curiosa para saber por que o crápula ganhou o apelido de Zero-a-Zero. Ela já sabe.