Carlos Sena
Michael Douglas
Michael Douglas
O
leitor sabe, esse leitor desgraçadamente fiel e cheio de cobranças, que sou
dado a certas crises depressivas, coisa que a bombinha da asma não resolve.
Aí,
depois de encher o peito de ar (na medida do possível) e clamar pelos deuses do
arroubo e da coragem, boto um pé, um pequeno pé, para além do portão de casa. E
ando, e ambos os pés vão crescendo, crescendo, crescendo, até o boteco mais
próximo.
Minha
sorte é ter filhas sensíveis, que compreendem meu desmazelo, minha “preguiça”,
e dizem: “Papito, se você quiser a gente vai aí ajudar na casa.” Ajudar na casa
quer dizer: vamos limpar um pouco dessa imundície, e o resto fica por sua
conta. Meu problema é o resto, leitor, é o resto.
Filhas...
Como tê-las e não amá-las? Houve quem me perguntasse se eu não queria um filho
homem. Ah, não. Só de pensar numa cópia mais mal-ajambrado do que sou fico com
vontade de entrar em pânico.
Foi
assim que certa vez fui parar à solitária mesa da calçada do Bar do Warllen,
onde passei a empunhar garbosamente meio copo de rabo de galo e a expirar o
fumo de um paraguaio qualquer de vinte centavos a unidade. E estava lá,
chamando mais uma crise de asma, quando me aparece o Pato Donald.
Não,
leitor coxinha, não. Não confundo meu curvilíneo bairro com uma Disneylândia. É
que o cara... Bem.
Sou
implicante, sou mesmo. Ele tinha uma namorada que não deveria ser dele. E deveria ser de quem, então? Do alto desta minha petulância, eu achava que ela tinha
mais jeito para mim.
E
aí implicava.
E
éramos amigos. Ainda somos. Pelo menos, há cumprimentos efusivos quando às vezes
nos encontramos no sempre superlotado ônibus da concessionária de serviço
público.
A
esta altura, tenho que botar minha mãe no meio desta conversa. Em tardes sem
que fazer, ficávamos os dois diante da televisão preto e branco a ver filmes e
desenhos animados.
Os
filmes, geralmente (quando não era episódio da série MacGyver), tinham como personagens centrais
crianças inteligentíssimas. Mãe dizia não suportar filme com crianças e
cachorros. Mas suportava, para me fazer companhia.
É daí que me ocorreu associar meu amigo ao pato
do desenho animado. Não propriamente ao pato, mas à voz do dublador.
Por falar em dublador... Não, não mudemos de
assunto.
Meu amigo era feirante, acordava de madrugada
para providenciar a vida. A gente, os três, se encontrava sempre comecinho de
noite.
O casal, alegre, chegava com os cabelos ainda
úmidos do banho pós-foda. Mas antes, lá sentadão, eu via quando eles assomavam
na esquina, e ficava a observar a figura esbelta da moça, unicamente a figura
da moça, até que puxavam cadeira.
É assim. Nem preciso dizer mais nada.
Uma noitinha ela chegou, cabelos secos, e
informou que o companheiro tinha ido à Ceasa tratar de um frete, ou sei lá o
quê. (Algumas vezes me sinto incomodado com o leitor que gosta de detalhes.)
Bebemos, conversamos. E conversamos e bebemos,
até que ele apontou na esquina. Eu disse: “Lá vem o pato rouco.”
Ela gargalhou. O riso tão belo, tão cristalino,
como se viesse ecoando de algum romance de Zé de Alencar, possivelmente Sonhos d’Ouro.
Onde é que estávamos mesmo? Ah, sim, no Bar do
Warllen.
O amigo chegou de repente, surpreendentemente. Não
precisava das madrugadas, senão para dormir. Agora mexia com confecção na Feira
Hippie, que funciona aos domingos.
Falamos abobrinhas, algo que ele não tinha mais
que vender. Perguntou como estava o Diário
da Manhã, onde havia muito tempo eu não trabalhava mais. Mesmo assim eu disse:
“Uma bosta.” E ele: “Então quer dizer que é a mesma merda.”
Quase naufragados no silêncio, ficamos a nos
encarar.
“Tem visto a Fulana?”, quis saber. Respondi que
fazia anos que não a via. E ele, meio enigmático (foi assim que interpretei suposta
investida, infantil leitor): “Sabe que ela tem um filho?” Não, eu não sabia.
Enquanto ele se referia com carinho à antiga
companheira, e com certa reserva ao menino, fiquei sem ter o que comentar. Por
isso indaguei: “Como ele se chama?”
“Michael Douglas.”
Meio arriado para dentro de mim, intentei
calcular a distância no tempo. Para isso, tinha que saber a idade do
estrupício. O amigo informou. Achei que ele estava tão angustiado quanto eu.
O desgraçado bem que podia ser meu filho.
Michael Douglas... Mas não, não.
Onde diabos deixei a bombinha da asma?
Hamilton Carvalho
(13/3/2016)
Vixe! Mas tu está como sempre por demais estiloso. Sofisticado. Íntimo do 'Zé' de Alencar. Eu nunca soube que o Warllen (Sabino) tivesse um bar. Ah! a dublagem do Pato é do Claudio Galvan, mas no seu tempo deveria ser o Márcio Gianullio. E com essa asma não deveria cobiçar a mulher do próximo, por cometer tantos pecados simultâneos: luxúria (deixar-se dominar pelas paixões); inveja; preguiça (de procurar outra); soberba também, por achar que vai conseguir. E, se der certo ainda poderá perder as duas bombas... Sobre a ilustração quase acertei. Joguei o Bambi e deu Pato Donald. Ademais, foi tanta gente fina nessa crônica, nada casual, que até eu tive falta de ar.
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