Jardim das Borboletas, com a fonte, a musa e seus anões |
Transbordante de otimismo
Otimista, sou dos que olham para o
passado e exclamam: “Duros tempos aqueles.”
Encoscorado, como
dizia minha mãe, sou também alma sensível e piedosa. Dias atrás, por exemplo,
ao passar pela Praça do Violeiro, no Setor Urias Magalhães, fiquei com muita
pena daquela patética estátua.
Que miserável roubou
a viola do violeiro? O instrumento do coitado é hoje apenas o desenho de um
gesto. Ele, no entanto, está lá, firme, há muitos anos, tocando silêncio no
invisível.
Outra estátua que me
confrange o coração é a da Praça do Bandeirante, embora o homenageado não
tivesse sido grande coisa nem feito nada de especial. Botar fogo em água é
besteira. Até eu, em minha atual fase.
Ultimamente, quando
me arrisco por aquela estuporada praça, acomete-me um surto de meditação
profunda: “Tadinho, mais uma reforma na Avenida Anhanguera e o infeliz vai ter
que se equilibrar num pé só.”
Mas, otimista, penso
que talvez o violeiro esteja melhor sem viola, sublimando a canção da
eternidade. O bandeirante pode-se dar por feliz por não lhe terem roubado o
sanguinário mosquete.
O leitor que me
conhece de outras jornadas pode estranhar essa coisa de ter peninha de estátua
cercada de humanidade sofrida por todos os lados. Vai ver tenho o coração da
mesma matéria com que se forjam esculturas.
Mas não sei se foi
por dó de alguém que aquele busto encravado em frente do Teatro Goiânia
sobreviveu às maquinações de um grupo que planejara dinamitá-lo. Não sei.
Houve em minha vida
uma estátua muito importante. De mulher. Que mulher. Não dessas coisinhas
desmilinguidas, chuladas, de plástico azulado, que se veem em butiques de
shopping.
É um (espero que
ainda não a demoliram a pretexto de revitalizar a praça), é um mulherão de
pedra, tamanho natural, calipígia, naquelas proporções ditadas pela boa e
pródiga natureza, e não por um Versolato qualquer.
[O Jardim das Borboletas foi "revitalizado" para se chamar Praça Tancredo Neves. "Fico a imaginar", diz o autor, ameaçando fazer longa enumeração, "o que teria acontecido com Rua das Flores, Estrada do Bem-Querer, Baixa da Égua...]
Estátua importante
para mim, nos meus tempos de menino. Porque – ali, na praça, sem censura e sem
frescura – me deu a real noção de como era uma mulher gostosa pelada.
A propósito,
lembro-me de certa propaganda que apareceu na TV, lá pela década de 70. Uma
garota andava por uma galeria deserta vestida apenas com sapatos. Claro, o
anúncio era de sapatos.
Para interpretar a
consumidora, o publicitário Washington Olivetto – levando em conta o
obscurantismo mais velho que a folha de parreira da Eva de Adão – escolheu
mocinha chulada, só rego. “Para não chocar.”
Mesmo com todo esse
anoréxico cuidado, o comercial foi veiculado apenas uma vez. Com seus orifícios
cheios de teias de aranha, as velhotas da Censura ficaram chocadas.
Ora, lúbrico leitor,
o que choca é essa injustificável discriminação contra um belo naco anatômico.
O escultor da minha
terra era macho retado, um artista literalmente de mão-cheia. Fico a imaginar
como o danado conseguiu modelo tão bem fornido, tão bem entalhado pela
natureza.
As esculturas que
ando a ver atualmente são patéticas, malproporcionadas, cheias de bossa (como
a do coitado do violeiro; bossa aqui não tem nada com bossa nova) ou
monstruosas (como a do bandeirante, por sinal muito bem representado naquela
soturnidade toda).
Não sei que diabo de
relação há entre estatuária e otimismo. Mas, porra, sou otimista. Daqueles que
ao meditar sobre o passado, com estátua de mulher gostosa ou não, exclamam:
“Ásperos tempos, tempos do Cão.”
[Após a publicação deste texto a viola
do violeiro reapareceu. O mistério do desaparecimento, porém, continua.]
Hamilton Carvalho
(Gazeta de Goiás, n.º 107,
25/7/1999)
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